Olhares

“Vou te contar, os olhos já não podem ver
Coisas que só o coração pode entender
Fundamental é mesmo o amor
É impossível ser feliz sozinho…”
Wave (Tom Jobim)

Amigos, não tenho feito absolutamente NADA nessas férias.
Tem sido um enorme período de ociosidade (que estou adorando por sinal).
Mas esse ócio não está sendo criativo e eu ando sem inspiração.
Por isso, deixo com vocês esse conto que escrevi anos atrás.
Gosto dele, apesar de todos os clichês.
Detalhe, ele já foi publicado numa coletânea de contos de um concurso estadual aqui do RJ.
Espero que gostem.

O OLHAR EM DUAS VIDAS

Anos 50. As mulheres ainda eram muito recatadas e os homens muito cavalheiros. Andando pelo centro da cidade, em meio a bondes e a um insinuado progresso, ele seguia distraído. Pensava na vida, nos problemas do cotidiano, nos seus vinte e três anos.
Ainda distraído pegou o bonde. Sentou-se e desviou sua atenção para a paisagem. E ficou a pensar no tudo e no nada. Da paisagem passou a observar os passageiros. E foi então que seus olhares se encontraram.
Ela era linda. A mais linda que ele já havia visto. Estava sentada e quando se viram firmou o olhar. Era um olhar penetrante, fixo, envolvente. E ficaram assim, olhando-se. E apenas olharam-se, já que ele teve de descer no seu ponto e ela seguiu no trajeto do bonde.
Durante muito tempo ele pensou nela e lembrava-se daquele olhar. Mas com o passar do tempo, aquele olhar se transformou no que realmente era: uma lembrança de um pequeno flerte e nada mais.
Muito tempo se passou. Um dia, caminhando pelo calçadão ele estacou. Era ela. Vinha gargalhando, com um grupo de amigas, muito feliz. Era ainda a mesma garota daquele dia no bonde, exatamente como ele se lembrava.
A lembrança adormecida acordou imediatamente e tomou conta de todo seu ser. Parado no meio do calçadão, sem saber o que fazer, ele viu o grupo de garotas passar e ela ir junto, sem perceber a sua presença. Mas não importava. Somente vê-la novamente havia sido muito bom. E enquanto acompanhava com o olhar o grupo de meninas afastar-se, ela subitamente virou-se para trás. E mais uma vez seus olhares se encontraram. Não deve ter durado mais que alguns segundos, mas pareceram anos. O mesmo olhar da outra vez: penetrante, fixo, envolvente. A certeza veio naquele momento: ela lembrou-se dele. Mas seguiu seu caminho, deixando-o mais uma vez a pensar naquele olhar.
Agora a lembrança dela e de seu olhar eram freqüentes. Bastava fechar os olhos que ele conseguia visualizar o contorno do rosto e deixar-se invadir por aquele olhar que lhe causava uma sensação tão reconfortante que ele nem sabia explicar.
Quando contou pra um amigo a história, foi chamado de maluco. O amigo zombou e perguntou se ele estava apaixonado por uma mulher que ele havia visto apenas duas vezes na vida. Desconversou e riu junto. Era bobagem, claro. Apenas cruzaram o olhar, nada mais.
Ele nunca foi muito religioso. Nos seus trinta anos, passara diversas vezes na frente daquela igreja e nunca tivera vontade de entrar. Mas nesse dia sentiu uma necessidade. Eram quase dezenove horas e havia um movimento enorme na entrada da igreja; um casamento era evidente. Ele não se importou e subiu as escadas. A igreja estava belamente adornada e ele se dirigiu para os primeiros bancos. Sentou-se, olhou para o altar e só então se perguntou o que fazia ali. Foi quando a marcha nupcial começou a tocar e todos se levantaram para acompanhar a entrada da noiva. Sentiu-se ridículo: estava na cerimônia religiosa de um casamento de pessoas que ele não sabia quem eram. Levantou-se com o propósito de ir embora sem chamar atenção. Foi quando viu a noiva entrar. Num andar gracioso ela esbanjava felicidade. Ele sentiu um aperto no coração, a boca seca, uma vontade de se enfiar num buraco: era ela. Pela terceira vez se cruzavam. Ele queria ir embora, mas não conseguia se mover, apenas encarava aquela beleza que tanto o envolvia. Foi aí que ele percebeu que ela vacilou nos passos: seus olhos se encontraram. Ela continuou a caminhar, mas olhando fixamente para os olhos dele. Aquele olhar mais uma vez.
Assim que o padre começou a cerimônia ele foi embora atordoado. Como podia ficar assim por uma pessoa que nem mesmo conhecia? Aquilo era loucura e ele resolveu esquecer.
Não conseguiu.
Mas o tempo passou. Ele também se casou, viu os filhos crescerem, formarem famílias e quando a esposa faleceu se viu novamente sozinho. Agora, na velhice, não queria dar trabalho aos filhos e decidiu ir morar numa casa de repouso. Os filhos não queriam aceitar, mas ele sempre fez o que quis e dessa vez não seria diferente.
Encontrou o local ideal, um lar para esperar sua hora chegar. Mudou-se e passou a viver sua velhice como vivera sua vida até então: ativamente. Na casa de repouso havia muitas atividades para os moradores e ele se empenhava no máximo que podia.
Um dia, sentado no jardim da casa de repouso ele observou uma senhora que adentrava pelos portões. A senhora era graciosa e elegante, com andar firme e altivo. Carregava uma mala e ele se levantou para ajudá-la. Quando chegou perto e se ofereceu para pegar a mala ficou pálido: era ela. O tempo, é claro, também passara para ela, mas ele nunca se esquecera daquela feição. E quando seus olhares se cruzaram ele teve a certeza. Era o mesmo olhar das outras três vezes. O olhar que ele se lembrara por toda a sua vida.
E ali, no jardim da casa de repouso, pela primeira vez se falaram. E falaram, falaram e falaram. Contaram detalhes de suas vidas um para o outro e a conversa fluía como se fossem amigos de uma vida inteira.
Até que num momento reinou o silêncio. Mas não era um silêncio sem palavras. Era um silêncio que dizia tudo. Um silêncio sustentado pelo olhar de ambos. O olhar de duas vidas que mesmo distantes, haviam sido unidas. Por um olhar…
LFC

E vou ficando por aqui.
Mas juro que volto e em breve, com a regularidade de antes.
Beijos

18 Responses to Olhares

  1. adorei o conto!
    você deveria escrever mais.
    e sobre ociosidade? eu não chamo fazer sexo todos os dias de ociosidade!
    beijos

  2. SAM disse:

    Bom mesmo, porque adoro suas histórias!

    Proveite as ferias!

    beijo

  3. Fabu disse:

    Viva o óciooooooooooooo
    Já está na hora de escrever um conto novo…kkkkkkkkkk já li esse várias vezes…
    Mandei por e-mail… fui ignorada outra vez, resultado: duas caixas de bis pra dentro da barriga… por favor pode dar porrada…rs

    te amoooooooooooooooo

  4. Fernando disse:

    Perfeito o texto! Os dois personagens do conto são verdadeiros privilegiados por terem voltado a cruzar seus olhares. Na vida, pelo menos na minha, não é assim. Uns olhares marcam tanto, mas acabam não voltando mais. Vou esperar até o último dia, quem sabe eu também dou essa sorte.

  5. Tanta coisa! disse:

    Conto em clima de paixão hein? tem a ver com os belos olhos verdes de alguns posts atrás? Claro que sim! Ah, e o ócio é ótimo, relaxa e aproveita!. Bj

  6. pinguim disse:

    Gostei muito.
    É raro uma história aqui na blogosfera atingir as pessoas da chamada “terceira idade”, sempre tão esquecida…
    Abraço.

  7. Tathiana disse:

    Como assim, nada? Vc viajou, curtiu com os amigos… E eu q num arredei os pés de roça city? rs.
    Sabe, adorei o conto. Me fez pensar e pensar…
    Beijão.

  8. K disse:

    olha! ócio! inveja branca…! rs

    e achei meio desesperador conto…!

  9. Oi oi oi. Obrigado pela visita. E pelo conto. Podem falar dos cliches, mas me arrepiei no final. Sou um romantico inveterado que acredita no final feliz, mesmo que ele demore. Vou te add.. Li outros posts e gostei da forma como vc ordena sem pensamentos em palavras. Abreijos.

  10. DO disse:

    Muito bom!!
    Alias,um lado seu que eu desconhecia.
    Deve escrever mais.

    🙂
    Abração!!

  11. Oz disse:

    Gostei francamente.
    Uma narrativa simples, mas eficaz e envolvente. E, curioso, essa coisa dos (des)encontros ao longo da vida também é um tema que me inspira.
    Abraço.

  12. Sieger disse:

    Ameiii
    eu ando num ócio danado tb

  13. Thiago disse:

    Esqueci de te falar no msn ontem.. adorei este teu conto..

    Um bjo.. se cuida!

  14. Alone disse:

    Boooooooooom dia amigo, c tá bem!? QUe linda a história, vc q escreveu!?
    Pode xá que trei o Br já … rs!
    Abra~ção

  15. Alone disse:

    Abafa, coletânea de contos … rs !
    Vc mora no Rj e não tem nada pra faze rnas férias, fala sério, meu sonho é ir pra ih!

  16. Daniel disse:

    Viada, cade a senhora que ainda não veio me mostrar a cidade maravilhosa?? huauhauha

    To esperando, quero conhecer a noite carioca, pq os cariocas eu já conheci hahahah.. adoro… aloka, deixa meu namorado ler isso rsrsrs ( brincadeira amor, viu rsrsrs )…

    Beijos querido e saudades…. rsrs

    inté.

  17. Marcella Sing disse:

    Gente… que lindo! Já pensou em escrever um livro, moço???
    Pois devia…

    Bjossssssss

  18. Eduardo disse:

    Caralho, ótimo conto!
    Mereceu mesmo ser publicado em livro
    E postei já ahaha
    boa semana
    bjs

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